quinta-feira, 25 de julho de 2013

A maior flor do mundo



A história começa com um menino de nome João. O menino estava triste porque não tinha com que se distrair. Tinham-lhe oferecido lindos  livros de histórias, mas ele não sabia ler nem escrever e o pai tinha-o proibido de sair de casa  sozinho. Sentou-se à janela, com a sua camisola encarnada, a olhar para a rua.
Aborrecido por não estar a fazer nada, decidiu sair de casa, mesmo sem pedir licença.
Naquela manhã, o sol brilhava e apetecia-lhe correr pelos campos.
Saiu com cuidado para não ser visto e, mal passou por baixo do arco do portão da quinta,  pôs-se a correr tão depressa quanto pôde. Sabia que não tinha licença para atravessar o portão,  mas resolveu arriscar.
Atravessou a aldeia num instante e começou a andar por caminhos desconhecidos até que  chegou a um caminho estreito e inclinado. Distraiu-se a olhar para um coelho que espreitava na toca e acabou por escorregar pelo caminho abaixo, indo parar ao pé de uma árvore onde um lindo pássaro vermelho e preto, das mesmas cores que ele tinha vestidas, cantava.
O passarinho levantou voo em direção a um monte muito redondinho e o menino resolveu segui-lo. Ele sabia que estava muito longe de casa, para lá de Marte.
No cimo do monte, apenas encontrou uma flor que devia ter sido bonita, mas estava quase seca, dobrada com o peso das pétalas. A preocupação com a flor fê-lo esquecer o pássaro. O João sabia que a flor precisava de água para sobreviver e crescer, mas não havia perto nenhuma fonte, nenhum riacho. Lá embaixo, na planície, corria o rio Nilo, mas ele não tinha nada com que pudesse transportar água.
Cada vez que regava a flor, ela crescia mais de um metro e as pétalas ficavam cada vezmais bonitas. O João sentia-se orgulhoso da sua obra e nem se lembrava de regressar a casa.
Ao pôr do sol, o João ainda não tinha terminado a tarefa. Quando quis voltar para casa, já era escuro e ele tinha se esquecido do caminho. Cheio de medo, deitou-se ao pé da flor. Estava com fome e tremia de frio.
A flor, agradecida, deixou cair uma pétala sobre o João para aquecê-lo. Na base da pétala havia um saquinho cheio de néctar que matou a fome e a sede do menino, tal como o menino tinha matado a sede da planta.
O João adormeceu, protegido pela flor que tinha salvo e só acordou, já o sol ia alto, com os gritos de alegria que o pai deu quando o encontrou.
O pai do João tinha andado, com amigos e familiares, toda a noite à procura do filho. Quando os pais do João deram pela falta do filho, primeiro ficaram zangados, depois preocupados e, por fim, muito tristes. Ninguém sabia onde ele estava e temiam que tivesse sido comido por uma fera. Fartaram-se de chorar.
Quando amanheceu, olharam para o cimo do monte e viram uma flor enorme, maior que uma árvore, tão grande que nunca se vira uma igual. Apesar de preocupados com o João, quiseram ver de perto aquele fenômeno. Foi então que viram o menino a dormir, muito aconchegado numa pétala da flor colorida com todas as cores do arco-íris.
O João contou a todos a sua aventura e agradeceu-lhes que o tivessem vindo buscar, porque já não sabia voltar para casa. Estava perdido e tinha muitas saudades da mãe.
Chegaram a casa muito cansados por terem trazido o menino de tão longe. O João dormia profundamente.
No dia seguinte houve festa na aldeia e, nas janelas das casas de pedra, havia vasos de flores. Todos quiseram prestar homenagem ao menino que se sacrificou por uma flor, tornando-a a maior do mundo.
O menino cresceu e, com o tempo, tornou-se um senhor muito velho. Ainda hoje escreve histórias à sombra da flor que ainda existe. Continua a tratar dela e, para ele, aquela flor é a maior do mundo.
Adaptado: SARAMAGO, José. A maior flor do mundo. Companhia das Letrinhas.

O VELHO E A VIDA – PEDRO BLOCH



            A sala do Esportivo estava repleta. Aprecia até show de Chico Buarque. Tomaram parte na mesa o Dr. Galvão, dona Letícia, dona Luciana (a psicóloga do clube) e Paulinho, representando os alunos.
            O Dr. Galvão achou que era de seu dever anunciar o orador.
            -Senhores e senhoras. – Dentro do trabalho dos alunos, de levantamento dos problemas das pessoas mais maduras (quis evitar “velhos”), convidamos, hoje, o nosso amigo Sr. Cândido Vieira Cardoso, membro honrado de nossa comunidade, para dizer algumas palavras sobre a idade provecta. Tem a palavra o nosso convidado de hoje.
            Enquanto “seu” Candinho começava a suar frio, ao ir chegando à tribuna, Tio Lucas distribuía os sorrisos mais abertos e um abraço global, abrangente.
             E agora?
            “Seu” Candinho não sabia onde esconder seu olhar, onde guardar suas mãos e como começar, mas recordou, com esforço, as palavras do mestre Danilo:
            -Ninguém, meus amigos, quer ser velho, porque o velho, em nossa cultura, não é o que alcançou o topo da montanha, mas é forçado ao declínio, a uma descida, que é marcada, quase sempre, pelo calendário. O velho – para muitos – não é. Já era.
            Risos na plateia e ele continua:
            -Não é assim que dizem os moços? Velho, careta, pé-de-chinelo, já era? Mas eu diria que ele ainda é, quando lhe permitem ser.
            -Mas que acontece em certos países do Oriente? O velho é reverenciado , o velho é venerado, o velho é conselheiro, é equilíbrio, é bússola, é rumo. Há lugares no mundo em que a velhice é privilégio, é prêmio, é meta. mas até isso está desaparecendo. se dá Mais tempo de vida sem dar a vida do tempo.
            Alguns aplausos esparsos.
            Prossegue:
            -Muita gente imagina que a sabedoria decorre da inteligência. Não é verdade. A sabedoria decorre do haver vivenciado, experimentado, amadurecido. Os problemas decorrem do fato de muitos velhos não terem se defrontado com a verdade, não terem amadurecido devidamente, não terem alcançado sabedoria.(...)
            E concluiu:
            -Eu infelizmente, não estou entre os que amadureceram e chegaram à verdadeira sabedoria. Mas quero prestar a minha homenagem a alguém que a alcançou, que é uma eterna alegria de viver e que se prolongou no futuro: - quero que aplaudam o exemplo admirável de meu querido amigo Tio Lucas.
            As palmas que se seguiram foram tão vibrantes que o próprio Tio Lucas encabulou. Mas “seu” Candinho sentiu, como poucas vezes na vida, um coração aquecido, uma sensação boa de quem, ainda que temeroso, consegue olhar, não de frente e sempre – mas de vez em quando – o grande problema da vida. Cada momento é eternidade, cada segundo é infinito que se repete, cada ser humano repete a Humanidade inteira.
            Descobriu-se, depois, chorando baixinho. Há quanto tempo não conseguira aquilo, senhor Deus! Jamais havia percebido o bom que era poder chorar baixinho.
            As palmas continuavam. 

O peru medroso



Gordo peru e lindo galo costumavam empoleirar-se na mesma árvore. A raposa os avistou certo dia e veio vindo contente, a lamber os beiços como quem diz: “Temos petisco hoje!”.Chegou. Ao avistá-la, o peru leva tamanho susto que por um triz não cai da árvore. Já o galo o que fez foi rir-se; e como sabia que trepar à árvore a raposa não trepava, fechou os olhos e adormeceu.
O peru, coitado, medroso como era, tremia como varas verdes e não tirava do inimigo os olhos.
— O galo não apanho, mas este peru cai-me no papo já... — pensou consigo a raposa.
E começou a fazer caretas medonhas, a dar pinotes, a roncar, a trincar os dentes, dando a impressão duma raposa louca. Pobre peru! Cada vez mais apavorado, não perdia de vista um só daqueles movimentos. Por fim tonteou, caiu do galho e veio ter aos dentes da raposa faminta.
— Estúpido animal! — exclamou o galo acordando. Morreu por excesso de cautelas. Tanta atenção prestou aos arreganhos da raposa, tanto atendeu aos perigos, que lá se foi, cataprus.

Moral da História: A prudência manda não atentar demais nos perigos.
LOBATO, Monteiro. Fábulas. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 26-27.

Soneto Camoniano – Luís Vaz de Camões


Amor é fogo que arde sem se ver;

é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
(Luís Vaz de Camões)
Na primeira estrofe, a ambivalência do amor está demonstrada na ardência do corpo e na transcendência da alma. A utilização de metáforas denuncia a contradição entre o amor físico: “fogo que arde”, “ferida que dói”, e o amor espiritual: “sem se ver” e “não se sente”. Nas três primeiras estrofes, o poeta esforça-se para conceituar a natureza do amor, que, para ele, é contraditório. Na última estrofe, ele chega a conclusão sobre os efeitos desse sentimento: como pode um sentimento tão contraditório levar conforto aos corações humanos?

+ de dez mil acessos....

Puxa, que legal.... Produzo esse texto para agradecer a todos que visitam o blog e hoje vi que são mais de 10.000 acessos!!!!
Fico feliz por poder estar ajudando pessoas de vários lugares do mundo com textos e informações sobre Línguas e principalmente da Língua Portuguesa e que compartilham com tantos outros que valorizam a nossa  língua e nossa cultura,
Obrigada mesmo...
Eu em alguns momentos de descontração com meus alunos.....rssrsr

terça-feira, 23 de julho de 2013

Liberdade




Deve existir nos homens um sentimento profundo que corresponde a essa palavra LIBERDADE, pois sobre ela se têm escrito poemas e hinos, a ela se têm levantado estátuas e monumentos, por ela se tem até morrido com alegria e felicidade.
Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão; nossos bisavós gritavam "Liberdade, Igualdade e Fraternidade! "; nossos avós cantaram: "Ou ficar a Pátria livre/ ou morrer pelo Brasil!"; nossos pais pediam: "Liberdade! Liberdade!/ abre as asas sobre nós", e nós recordamos todos os dias que "o sol da liberdade em raios fúlgidos/ brilhou no céu da Pátria..." em certo instante.
Somos, pois, criaturas nutridas de liberdade há muito tempo, com disposições de cantá-la, amá-la, combater e certamente morrer por ela.
Ser livre como diria o famoso conselheiro... é não ser escravo; é agir segundo a nossa cabeça e o nosso coração, mesmo tendo de partir esse coração e essa cabeça para encontrar um caminho... Enfim, ser livre é ser responsável, é repudiar a condição de autômato e de teleguiado é proclamar o triunfo luminoso do espírito. (Suponho que seja isso.) 
Ser livre é ir mais além: é buscar outro espaço, outras dimensões, é ampliar a órbita da vida. É não estar acorrentado. É não viver obrigatoriamente entre quatro paredes.
Por isso, os meninos atiram pedras e soltam papagaios. A pedra inocentemente vai até onde o sonho das crianças deseja ir. (As vezes, é certo, quebra alguma coisa, no seu percurso...)
Os papagaios vão pelos ares até onde os meninos de outrora (muito de outrora!...) não acreditavam que se pudesse chegar tão simplesmente, com um fio de linha e um pouco de vento!
 ...
Acontece, porém, que um menino, para empinar um papagaio, esqueceu-se da fatalidade dos fios elétricos e perdeu a vida.
E os loucos que sonharam sair de seus pavilhões, usando a fórmula do incêndio para chegarem à liberdade, morreram queimados, com o mapa da Liberdade nas mãos!
 ... 
São essas coisas tristes que contornam sombriamente aquele sentimento luminoso da LIBERDADE. Para alcançá-la estamos todos os dias expostos à morte. E os tímidos preferem ficar onde estão, preferem mesmo prender melhor suas correntes e não pensar em assunto tão ingrato.
Mas os sonhadores vão para frente, soltando seus papagaios, morrendo nos seus incêndios, como as crianças e os loucos. E cantando aqueles hinos, que falam de asas, de raios fúlgidos linguagem de seus antepassados, estranha linguagem humana, nestes andaimes dos construtores de Babel...


(MEIRELES, Cecília. Escolha o seu sonho: crônicas Editora Record  Rio de Janeiro, 2002, p. 07.)

ENCONTRO DE EXTREMOS



            Foi uma viagem e tanto. Mercúrio percorreu rapidamente os quase cinco bilhões de quilômetros que o separam de Plutão. Isso sem olhar para trás, a uma velocidade de cento e oitenta mil quilômetros por hora (eu disse “cento e oitenta mil quilômetros por hora!”), e sem parar, nem para um xixizinho. Foram mais de mil dias de viagem incrível através do Sistema Solar. Ele levava na mala o que ainda era um mistério para os planetas – documentos secretíssimos falando de coisas estranhas e perigosas que estavam acontecendo no planeta Terra.
            Assim que entrou na órbita de Plutão, Mercúrio olhou para trás. Lá longe está o Sol. Já não lhe parecida aquele gigante em chamas que o impressionava. Mesmo assim, era a estrela mais brilhante que ele podia ver daquele ponto do Universo.
Você já deve ter percebido que esta é uma história de planetas. Para eles, as coisas se passam de maneira um pouco diferente do que para nós. Por exemplo: quando eu disse que a viagem de Mercúrio até Plutão foi rápida, quis dizer que foi rápida para um planeta. Mais de mil dias é um tempo grande para a gente, mas é pequeno para os planetas, pois eles podem viver bilhões de anos.
            Outra coisa diferente nesta história é que o que é mistério para os personagens (os planetas) pode não ser mistério para nós. É possível que você saiba quais as coisas estranhas e perigosas que se passam na Terra. Entretanto, pode ser que não se lembre. Nesse caso, este livro há de refrescar sua memória.
            Mas voltemos a Mercúrio. Como você deve ter aprendido, trata-se do planeta mais próximo do Sol. Por isso, os gases flamejantes1 quase encostam nele. Lá, a temperatura é tão alta durante o dia que, se houvesse chumbo em sua superfície, derreteria, formando rios e mares metálicos. Mas, para ser sincero, até que Mercúrio gosta desse calorzinho. Ainda mais que, à noite, a temperatura cai para – 170º C e ele se congela.
            Nosso herói estava muito longe de casa. Fazia frio e a temperatura, próxima de zero absoluto (que é frio mais de todos os frios), era insuportável. Para Mercúrio, significava resfriado na certa. Acontece que o seu cargo de mensageiro dos planetas o obriga a cumprir as mais perigosas missões, e não seria um simples resfriado que o impediria de cumprir mais essa.
            Além do mais, resfriado não é novidade. Por causa de seus dias muito compridos e da atmosfera muito rarefeita2, que não espalha bem o calor, os dias de Mercúrio são quentíssimos, e as noites, friíssimas. Por isso, mesmo quando descansa em sua órbita, ele vive às voltas com febre, calafrios, nariz escorrendo etc. Coisas que quem já teve gripe sabe como são: a gente quer brincar, nadar ou tomar um sorvete e não pode. No caso de Mercúrio é ainda pior, porque ele tem alergia a poeira cósmica, o que sempre vira bronquite. Aí, só com inalação de vento solar.
            ― Ô de casa! A-a-atchim! – Pronto, estava resfriado. ― Ô de casa! ― repetiu.
Nada.
            “Por onde anda Plutão?”, perguntou-se.
            Já que Plutão não estava, até pensou em dar uma olhada além das fronteiras do Sistema Solar. A curiosidade era grande. Mas não se atreveu porque lembrou do que tinha acontecido a Netuno. Se um planeta poderoso como Netuno fora tão terrivelmente afetado, o que aconteceria a ele, o pobre
mensageiro dos planetas?
            De repente, tudo escureceu. Alguém ou alguma coisa passou em frente ao Sol provocando um eclipse total. Mercúrio entrou em pânico. Tinha que fugir rapidamente. Mas para onde? Não via nada. Súbito3, um bafo gelado em seus ouvidos arrepiou-lhe todos os meridianos.
            ― Ei, rapaz... Aonde vai com tanta pressa... Cuidado... Vê se olha por onde anda...
            Mercúrio se virou e notou um fraco mas ameaçador brilho esbranquiçado se aproximando. Era Plutão que sorria horrivelmente, mostrando dentes pontiagudos de metano congelado. O mensageiro tremeu nas bases.  (...)
Marcelo R. L. Oliveira, Reunião dos Planetas. Editora Companhia das Letrinhas, 2006.

A criatura



            A tempestade tornava a noite ainda mais escura e assustadora. Raios riscavam o céu de chumbo e a luz azulada dos relâmpagos iluminava o vale solitário, penetrando entre as árvores da floresta espessa. Os trovões retumbavam como súbitos tiros de canhão, interrompendo o silêncio do cenário [...].
            Alimentadas pela chuva insistente, as águas do rio começavam a subir e a invadir as margens, carregando tudo o que encontravam no caminho. Barrancos despencavam e árvores eram arrancadas pela força da correnteza, enquanto o rio se misturava ao resto como se tudo fosse uma coisa só. Mas algo... ou alguém... ainda resistia.
            Agarrado desesperadamente a um tronco grosso que as águas levavam rio abaixo, um garoto exausto  e ferido lutava para se manter consciente e ter alguma chance de sobreviver. Volta e meia seus braços escorregavam e ele quase afundava, mas logo ganhava novas forças, erguia a cabeça e tentava inutilmente dirigir o tronco para uma das margens.
            De repente, no período de silêncio que se seguia a cada trovão, ele começou a ouvir um barulho inquietante1, que ficava mais e mais próximo. Uma fumaça esquisita se erguia à frente, e ele então compreendeu: era uma cachoeira! [...]
            Num pulo desesperado, agarrou o ramo de uma árvore que ainda se mantinha de pé perto da margem e soltou o tronco flutuante, que seguiu seu caminho até a beira do precipício e nele mergulhou descontrolado.
            A tempestade prosseguia e cegava o garoto, o rio continuava seu curso feroz e a cachoeira rosnava2 bem perto de onde ele estava. De repente, percebeu que a distância entre uma das margens e o galho em que se pendurava talvez pudesse ser vencida com um pulo. Deu um jeito de se livrar da camisa molhada, que colava em seu corpo e tolhia3 seus movimentos. Respirou fundo para tomar coragem.
            Se errasse o pulo, seria engolido pela queda-d’água... mas, se acertasse, estaria a salvo. Viu que não tinha outra saída e resolveu tentar. Tomou impulso e [...] conseguiu alcançar a margem. [...]
            Ficou de pé meio vacilante4 e examinou o lugar em torno, tentando decidir para que lado ir. Foi quando ouviu um rugido horrível, que parecia vir de bem perto. Correu para o lado oposto, mas não foi longe. Logo se viu encurralado5 em frente a um penhasco gigantesco, que barrava sua passagem. O rugido se aproximava cada vez mais.
            Estava sem saída. De um lado, o penhasco intransponível; de outro, uma fera esfomeada que o cercava pronta para atacar. Então, viu um buraco no paredão de pedra e se meteu dentro dele com rapidez. A fera o seguiu até a entrada da caverna, mas foi surpreendida. Com uma pedra grande que achou na porta da gruta, o garoto golpeou a cabeça do animal com toda a força que pôde e a fera cambaleou  até cair, desacordada.
            Já fora da caverna, ele examinou o penhasco que teria que atravessar antes que o bicho voltasse a si. [...]
            Foi quando uma águia enorme passou voando bem baixo e o garoto a agarrou pelos pés, alçando vôo com ela. Vendo-se no ar, olhou para baixo, horrorizado. Se caísse, não ia sobrar pedaço. Segurou com firmeza as compridas garras do pássaro e atravessou para o outro lado do penhasco.
            O outro lado tinha um cenário muito diferente. Para começar, era dia, e o sol brilhava num céu sem nuvens sobre uma pista de corrida cheia de obstáculos, onde se posicionavam motocicletas devidamente montadas por pilotos de macacão e capacete, em posição de largada. Apenas em uma das motos não havia ninguém.
A águia deu um voo rasante sobre a pista, e o garoto se soltou quando ela passava bem em cima da moto desocupada. Assim que ele caiu montado, foi dado o sinal de largada.
            As motos aceleraram ruidosamente e partiram em disparada, enfrentando obstáculos como rampas, buracos e lamaçais. O páreo era duro, mas a motocicleta do garoto era uma das mais velozes. Logo tomou a dianteira, seguida de perto por uma moto preta reluzente, conduzida por um piloto de aparência soturna. [...]
Inclinando o corpo um pouco mais, o garoto conseguiu acelerar sua moto e aumentou a distância entre ele e o segundo colocado. Mas o piloto misterioso tinha uma carta na manga: num golpe rápido, fez sua moto chegar por trás e, com um movimento preciso, deu uma espécie de rasteira na moto do garoto.
            A motocicleta derrapou e caiu, rolando estrondosamente pelo chão da pista e levantando uma nuvem de poeira. O garoto rolou com ela e ambos se chocaram com violência contra uma montanha de terra, um dos últimos obstáculos antes da chegada.
A moto negra ganhou a corrida, sob os aplausos da multidão excitada7, e o garoto ficou desmaiado no chão.
            Com um sorriso vitorioso, Eugênio viu aparecer na tela as palavras FIM DE JOGO. Soltou o joystick e limpou na bermuda o suor da mão. [...]

Laura Bergallo. A criatura. São Paulo: SM, 2005. p. 37-44. LEITURA 2 Romance de aventura

Um sapato em cada pé



  Esta é a história de dois pezinhos.
  Um pé esquerdo e um direito. Quem olhava assim rápido nem via muita diferença entre eles. Podia achar que um fosse o reflexo do outro como num espelho, mas eram muito diferentes.
  O esquerdo tinha o dedão mais gordinho e gostava de futebol. O direito morria de cócegas e adorava balé.
  O esquerdo preferia usar tênis.  Já o direito, por ele vivia descalço.
  O esquerdo, muito vaidoso, ficava feliz de unhas cortadas. O direito, mais desleixado, às vezes cheirava chulé.
  Como os pezinhos dependiam de sua dona, viviam fazendo acordos:
  - Tá bom, eu vou para trás na hora do arabesque, lá na aula de balé – dizia o esquerdo. – Mas, no futebol, eu chuto a bola.
  - Legal. – concordava o direito. – Mas, quando a gente estiver dançando, não fique reclamando que a sapatilha aperta.
  Conversavam sempre à noite, quando Mariana, a dona deles, dormia. Assim, podiam se entender melhor.
  Uma noite, Mariana perdeu o sono. Enquanto contava carneirinhos, ouviu uma vozinha dizendo assim:
  - Tomara que amanhã ela ponha meia rosa.
  A menina levou um susto. Levantou a cabeça do travesseiro, a tempo de ouvir o pé direito responder:
  - Ah, não. Gosto mais daquelas de listrinhas azuis.
  Mariana não podia acreditar no que via e ouvia. Os pezinhos continuaram:
  - Esqueceu que amanhã tem aula de futebol? – lembrou o esquerdo. – Ela sempre põe meias cor-de-rosa quando vai jogar.
  - Droga, então vai vestir as chuteiras também. Depois você reclama se eu fico cheirando a chulé.
  - Vou marcar um golaço, duvida? – gabou o esquerdo.
  -  Não, sei que graça você vê em futebol! – suspirou o direito.
  Mariana fez uma cara de quem tinha descoberto a América:
  - Então é por isso que eu chuto melhor com a esquerda!
  Os pezinhos prosseguiram no papo:
  - Não ligue. À tarde, ela vai na aula de dança e ai você fica feliz.
  - Vou fazer a melhor pirueta da minha vida, me espere!
  A menina se surpreendeu mais uma vez:
  - Por isso eu arraso quando fico na ponta do pé direito!
  Comovida, Mariana pensou no esforço que seus pezinhos faziam para se entenderem, apesar das diferenças. Pensou também como seria se todas as pessoas fizessem o mesmo.
  Afundou no travesseiro e dormiu.
  Na manhã seguinte, ela resolveu fazer uma surpresa para os seus pés. No esquerdo, vestiu a meia rosa e a chuteira. No direito, a meia listradinha de azul e a sapatilha. Foi para escola assim, com um pé de cada jeito.
  Quando pisou na sala de aula, seus colegas começaram a caçoar dela. Mariana tentou explicar que seus pés eram diferentes um do outro e que isso não tinha o menor problema. Mas a turma não parava de rir.
  Mariana descobriu como era difícil ser diferente. Só porque não usava sapatos iguais como todo mundo, tinha virado motivo de riso. Morrendo de raiva, ela foi chorar na biblioteca.
  Escondida atrás de uma estante, abaixou-se para ficar mais perto de seus pés. Acariciando ora o esquerdo, ora o direito, e disse:
  - Não liguem para esses bobos. Eu não vou deixar de gostar de vocês só porque são diferentes um do outro.
  Estava nisso quando alguém se aproximou. Mariana olhou pela fresta de uma prateleira e tudo que viu foi dois pés. Um estava calçado com tênis. O outro, com chinelo de praia.
  A menina levantou os olhos, maravilhada. Deu de cara com o Edgar, o novo colega de escola. Ele estendeu-lhe a mão dizendo:
  - Não chore, Mariana. Nenhum PÉ É IGUAL AO OUTRO.
  Foram os dois para o pátio. Ela já nem ligava mais para a zoada dos colegas. Mariana só ficava pensando num jeito de apresentar seus pés aos pés de Edgar.

Cláudio Fragata. In: Recreio Especial: Era uma vez..., n. 1. São Paulo, Abril, s/d.

A MORTE DA TARTARUGA



          O menininho foi ao quintal e voltou chorando: a tartaruga tinha morrido. A mãe foi ao quintal com ele, mexeu na tartaruga com um pau (tinha nojo daquele bicho) e constatou que a tartaruga tinha morrido mesmo. Diante da confirmação da mãe, o garoto pôs-se a chorar ainda com mais força. A mãe a princípio ficou penalizada, mas logo começou a ficar aborrecida com o choro do menino. “Cuidado, senão você acorda seu pai”. Mas o menino não se conformava. Pegou a tartaruga no colo e pôs-se a acariciar-lhe o casco duro.
           A mãe disse que comprava outra, mas ele respondeu que não queria, queria aquela, viva! A mãe lhe prometeu um carrinho, um velocípede, lhe prometeu uma surra, mas o pobre menino parecia estar mesmo profundamente abalado com a morte do seu animalzinho de estimação. Afinal, com tanto choro, o pai acordou lá dentro, e veio, estremunhado, ver de que se tratava.
 O menino mostrou-lhe a tartaruga morta. A mãe disse: — “Está aí assim há meia hora, chorando que nem maluco. Não sei mais o que fazer. Já lhe prometi tudo mas ele continua berrando desse jeito”. O pai examinou a situação e propôs: — “Olha, Henriquinho. Se a tartaruga está morta não adianta mesmo você chorar. Deixa ela aí e vem cá com o pai.”.
O garoto depôs cuidadosamente a tartaruga junto do tanque e seguiu o pai, pela mão. O pai sentou-se na poltrona, botou o garoto no colo e disse: — “Eu sei que você sente muito a morte da tartaruguinha. Eu também gostava muito dela. Mas nós vamos fazer pra ela um grande funeral”. (Empregou de propósito uma palavra difícil). O menininho parou imediatamente de chorar. “Que é funeral?” O pai lhe explicou que era um enterro. “Olha, nós vamos à rua, compramos uma caixa bem bonita, bastante balas, bombons, doces e voltamos para casa. Depois botamos a tartaruga na caixa em cima da mesa da cozinha e rodeamos de velinhas de aniversário.
Aí convidamos os meninos da vizinhança, acendemos as velinhas, cantamos o “Happy-Birth-DayTo-You” pra tartaruguinha morta e você assopra as velas. Depois pegamos a caixa, abrimos um buraco no fundo do quintal, enterramos a tartaruguinha e botamos uma pedra em cima com o nome dela e o dia em que ela morreu. Isso é que é funeral! Vamos fazer isso?” O garotinho estava com outra cara. “Vamos, papai, vamos! A tartaruguinha vai ficar contente lá no céu, não vai? Olha, eu vou apanhar ela”. Saiu correndo.
 Enquanto o pai se vestia, ouviu um grito no quintal. “Papai, papai, vem cá, ela está viva!”
           O pai correu pro quintal e constatou que era verdade. A tartaruguinha estava andando de novo, normalmente. “Que bom, hein?” — disse — “Ela está viva! Não vamos ter que fazer o funeral!” “Vamos sim, papai” — disse o menino ansioso, pegando uma pedra bem grande — “Eu mato ela”.
MORAL: O importante não é a morte, é o que ela nos tira.
                                   Fernandes, Millôr. Fábulas fabulosas. São Paulo: Círculo do Livro, 1973

A ESTRANHA PASSAGEIRA



     
O senhor sabe? É a primeira vez que eu viajo de avião. Estou com zero hora de vôo-e riu nervosinha, coitada. Depois pediu que eu me sentasse ao seu lado, pois me achava muito calmo e isto iria fazer-lhe bem. Lá se ia a oportunidade de ler o romance policial que eu comprara no aeroporto, para me distrair na viagem. Suspirei e fiz o bacana respondendo que estava às suas ordens.
     Madama entrou no avião sobraçando um monte de embrulhos, que segurava desajeitadamente. Gorda como era, custou a se encaixar na poltrona e arrumar todos aqueles pacotes. Depois não sabia como amarra o cinto e eu tive que realizar essa operação em sua farta cintura.
   Afinal estava ali pronta pra viajar. Os outros passageiros estavam já se divertindo às minhas custas, a zombar do meu embaraço ante as perguntas que aquela senhora me fazia aos berros, como se estivesse em sua casa, entre pessoas íntimas. A coisa foi ficando ridícula.
      -Para que esse saquinho aí ? – foi a pergunta que fez, num tom de voz que parecia que ela estava no Rio ou em São Paulo.
           - É para a senhora usar em caso de necessidade – respondi baixinho.
Tenho certeza de que ninguém ouviu minha resposta, mas todos adivinharam qual foi, porque ela arregalou os olhos e exclamou:
      -Uai.....as necessidades neste saquinho ? No avião não tem banheiro?
      Alguns passageiros riram, outros – pro fineza – fingiram ignorar o lamentável equívoco da incômoda passageira de primeira viagem. Mas ela era azougue ( embora com tantas carnes parecesse mais um açougue ) e não parava de badalar. Olhava para trás, olhava para cima, mexia na poltrona e quase levou um tombo, quando puxou a alavanca e empurrou o encosto com força, caindo para trás e esparramando embrulhos para todos os lados.
O comandante já esquentara os motores e a aeronave estava parada, esperando ordens para ganhar a pista de decolagem. Percebi que minha vizinha de banco apertava os olhos e lia qualquer coisa. Logo veio a pergunta:
         - Quem é essa tal de emergência que tem uma porta só pra ela?
     Expliquei que emergência não era ninguém, a porta é que era de emergência, isto é, em caso de necessidade, saía-se por ela.
Madama sossegou e os outros passageiros já estavam conformados com o término do “show”. Mesmo os que mais se divertiam com ele resolveram abrir jornais, revistas ou se acomodarem para tirar uma pestana durante a viagem.
Foi quando madama deu o último vexame. Olhou pela janela ( ela pedira para ficar do lado da janela para ver a paisagem ) e gritou:
          - Puxa vida!!!!!
    Todos olharam para ela, inclusive eu. Madama apontou para a janela e disse:
        - Olha lá embaixo.
   Eu olhei. E ela acrescentou:
   -Como nós estamos voando alto, moço. Olha só.......o pessoal lá embaixo até parece formiga.
  Suspirei e lasquei:
      - Minha senhora, aquilo são formigas mesmo. O avião ainda não levantou vôo.

                                             Stanislaw Ponte Preta   Para gosta de ler  Editora Ática