http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/a_moreninha.pdf
Isso é fato: 'quanto mais aprendemos, quanto mais estudamos, mais precisamos aprender, mais precisamos estudar'. Oferecer informações, trocar informações é algo significativo para quem vive no mundo educacional e também algo necessário para entender as mudanças que ocorrem à cada geração... Neste espaço, procurarei apresentar um pouco do conhecimento que adquiro e que seja algo proveitoso para sua pesquisa.
sábado, 9 de novembro de 2013
MISSA DO GALO Machado de Assis
Nunca pude entender a conversação que tive
com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de
Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir;
combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.
A casa em que eu estava hospedado era a do
escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas
primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim
de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios.
Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros,
poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher,
a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente
estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e
mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me
levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam
à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte.
Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia
amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por
semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas,
afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe "a
santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos
do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes
lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana;
aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal.
Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem
feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém,
perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.
Naquela noite de Natal foi o escrivão ao
teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em
férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A
família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e
pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém.
Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a
terceira ficava em casa.
- Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse
tempo? perguntou-me a mãe de Conceição.
- Leio, D. Inácia.
Tinha comigo um romance, os Três Mosqueteiros, velha
tradução creio do Jornal do
Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um
candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo
magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente
ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando
são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso.
Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram
uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a
cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.
- Ainda não foi? Perguntou ela.
- Não fui; parece que ainda não é meia-noite.
- Que paciência!
Conceição entrou na sala, arrastando as
chinelinhas da a1cova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo
magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de
aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de
mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer,
fazendo barulho, respondeu com presteza:
- Não! qual! Acordei por acordar.
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os
olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado
no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito,
depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por
minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era
boa, muito boa.
- Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.
- Que paciência a sua de esperar acordado,
enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro
mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.
- Quando ouvi os passos estranhei; mas a
senhora apareceu logo.
- Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é
o romance dos Mosqueteiros.
- Justamente: é muito bonito.
- Gosta de romances?
- Gosto.
- Já leu a Moreninha?
- Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
- Eu gosto muito de romances, mas leio pouco,
por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns.
Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por
entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava
a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse
nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça,
cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da
cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
- Talvez esteja aborrecida, pensei eu.
E logo alto:
- D. Conceição, creio que vão sendo horas, e
eu...
- Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o
relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não
dormir de dia?
- Já tenho feito isso.
- Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia
estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também
estou ficando velha.
- Que velha o quê, D. Conceição?
Tal foi o calor da minha palavra que a fez
sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora,
porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns
passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o
desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora,
tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição
nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes,
examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objeto no
aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o
círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu
repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e
não queria perdê-la.
- É a mesma missa da roça; todas as missas se
parecem.
- Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e
mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. São
João não digo, nem Santo Antônio...
Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os
cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não
estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos
braços, muitos claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era
nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a
impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca
claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me
ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da
cidade, e de outras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos,
sem saber por quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para
fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os
olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho
curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz,
ela reprimia-me:
- Mais baixo! Mamãe pode acordar.
E não saía daquela posição, que me enchia de
gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto
para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais;
ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida.
Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se
do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas;
mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e
cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:
- Mamãe está longe, mas tem o sono muito
leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.
- Eu também sou assim.
- O quê? Perguntou ela inclinando o corpo
para ouvir melhor.
Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado
do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono
leve; éramos três sonos leves.
- Há ocasiões em que sou como mamãe:
acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo
vela, passeio, torno a deitar-me, e nada.
- Foi o que lhe aconteceu hoje.
- Não, não, atalhou ela.
Não entendi a negativa; ela pode ser que também
não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos,
isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu
uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança.
Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente,
sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou
uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava
novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:
- Mais baixo, mais baixo...
Havia também umas pausas. Duas outras vezes,
pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se
logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma
dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os
tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa
noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma
das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas
simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu,
em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu
ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas
estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi
sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo
espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da
parede.
- Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi
a Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do
principal negócio deste homem. Um representava "Cleópatra"; não me
recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não
me pareciam feios.
- São bonitos, disse eu.
- Bonitos são; mas estão manchados. E depois
francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias
para sala de rapaz ou de barbeiro.
- De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de
barbeiro.
- Mas imagino que os fregueses, enquanto
esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista
deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que
eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto
dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito
bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no
meu oratório.
A idéia do oratório trouxe-me a da missa,
lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a
boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça,
com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a
igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas
anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de
mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente,
dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes
de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e
sete anos.
Já agora não trocava de lugar, como a
princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos
compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.
- Precisamos mudar o papel da sala, disse daí
a pouco, como se falasse consigo.
Concordei, para dizer alguma coisa, para sair
da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os
sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar
os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de
parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez
para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.
Chegamos a ficar por algum tempo, - não posso
dizer quanto, - inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de
camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis
falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando.
Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que
bradava: "Missa do galo! missa do galo!"
- Aí está o companheiro, disse ela
levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem
acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
- Já serão horas? perguntei.
- Naturalmente.
- Missa do galo! repetiram de fora, batendo.
-Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi
minha. Adeus; até amanhã.
E com o mesmo balanço do corpo, Conceição
enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que
esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição
interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus
dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente
que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia,
achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a
conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio
de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava
no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara
com o escrevente juramentado do marido.
Fonte: Contos Consagrados - Machado de Assis
- Coleção Pretígio - Ediouro - s/d
Machado de Assis A IGREJA DO DIABO
CAPÍTULO I
DE UMA IDÉIA MIRÍFICA
Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em
certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem
contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde
séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia,
por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos.
Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do
Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma
vez.
- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra
Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à
farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho
eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja
uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se
dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem
Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os
braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com
Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de
ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo
as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da
sombra para o infinito azul.
II
ENTRE DEUS E O DIABO
Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os
serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo
deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.
- Que me queres tu? perguntou este.
- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo
rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.
- Explica-te.
- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga:
recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais
afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos
cheios de doçura.
- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter
convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por
causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas
palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu
reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E
então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de
dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,
- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta
de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um
mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a
minha pedra fundamental.
- Vai
- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
- Não é preciso; basta que me digas desde já por que
motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma
igreja?
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha
alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória,
qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior
ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns
séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a
rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu
proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja;
atrás delas virão as de seda pura...
- Velho retórico! murmurou o Senhor.
- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés,
nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se
do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de
curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, -
a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os
benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou
quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me
detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz
de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma
comenda... Vou a negócios mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e
sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu
o Diabo.
- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um
espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está
dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força,
nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te
retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do
tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
- Já vos disse que não.
- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime.
Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos,
na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e
mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí
a franja de algodão?
- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
- Negas esta morte?
- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de
caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente
aborrecê-los...
- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a
tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os
homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus
impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as
harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar;
dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.
Ill
A BOA NOVA AOS HOMENS
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se
pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a
espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas
entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da
terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo;
mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir
as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites
sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e
único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do
coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos
lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um
lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o
entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de
si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A
doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à
substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e
deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser
substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a
luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou
não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e
a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem
o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de
Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as
melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão
superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi
a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de
ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela
virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons
manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela
sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica,
pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos
seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou
friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas;
virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo
incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas,
trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que
ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era
a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia
que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos,
outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração,
porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo
chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo,
era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender
a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma
razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não
podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são
mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?
Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os
cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a
outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um
privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim
o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou
pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria
dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo
tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e
subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das
injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a
calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária,
ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa
da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois
equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram
condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e
pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção
foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o
respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria
cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um
obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples
invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo
senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à
demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um
padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das
marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há
próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando
se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a
particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si
mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por
metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: -
Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada
acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos
adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.
IV
FRANJAS E FRANJAS
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja
capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja,
deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram
chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a
doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma
língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de
triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que
muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as
praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às
ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes
por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas,
à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário
restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez,
com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que
estavam embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais
diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até
incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente
uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das
vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para
ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o
procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano;
roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que
rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas
extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos
seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne
falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana,
telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na
cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao
jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de
um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e,
conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas
vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha
aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de
refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao
passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa
secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o
interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica.
Pôs os olhos nele, e disse:
- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm
agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres
tu? É a eterna contradição humana.
Fonte: Contos Consagrados - Machado de Assis - Coleção
Prestigio - Ediouro - s/d.
quarta-feira, 2 de outubro de 2013
TEXTOS, POEMAS DE RACHEL DE QUEIROZ
A Velha Amiga
Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho
saudade de nada. Isso independente de qualquer recordação de felicidade ou de
tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. Saudade de nada. Nem da infância
querida, nem sequer das borboletas azuis, Casimiro.
Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim presença atual.
Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar atrás? Acho que não, nem com eles.
A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais.
Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou expirimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude.
Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter saudades de um trapo velho que não nos cabe mais?
Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir.
E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.
Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade - mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais.
Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e, por isso mesmo, dos grandes heroísmos. É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo - e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale menos do que um grama; e por essas medida, pode-se descobrir a diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma arroba de plumas.
Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos.
A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Ai, um um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído.
E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos.
Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.
(Crônica publicada no jornal "O Estado de São Paulo" - 13/01/2001)
Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim presença atual.
Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar atrás? Acho que não, nem com eles.
A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais.
Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou expirimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude.
Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter saudades de um trapo velho que não nos cabe mais?
Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir.
E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.
Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade - mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais.
Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e, por isso mesmo, dos grandes heroísmos. É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo - e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale menos do que um grama; e por essas medida, pode-se descobrir a diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma arroba de plumas.
Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos.
A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Ai, um um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído.
E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos.
Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.
(Crônica publicada no jornal "O Estado de São Paulo" - 13/01/2001)
A Arte de Ser Avó
Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo...
Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é "devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis. Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avó, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...
No entanto - no entanto! - nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do garoto. Não importa que ela, hipocritamente, ensine o menino a lhe dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha", e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante dos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe de comer, dá-lhe banho, veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.
Já a avó, não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirulitos. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso nos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer roquetes, tomar café - café! -, mexer no armário da louça, fazer trem com as cadeiras da sala, destruir revistas, derramar a água do gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com o lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado! Fazer má-criação aos gritos e, em vez de apanhar, ir para os braços da avó, e de lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna...
Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém, esses prazeres não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós, com os seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!
E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz: "Vó!", seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.
E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe o castiga, e ele olha para você, sabendo que se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade...
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho - involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague...
(O brasileiro perplexo, 1964.)
Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto, como o filho adotado: o neto é realmente o sangue do seu sangue, filho de filho, mais filho que o filho mesmo...
Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações - todos dizem isso embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores nem de paixões: a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a prestações, você não encontra de modo nenhum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino seu que lhe é "devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo e decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis. Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avó, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto...
No entanto - no entanto! - nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do garoto. Não importa que ela, hipocritamente, ensine o menino a lhe dar beijos e a lhe chamar de "vovozinha", e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante dos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe de comer, dá-lhe banho, veste-o. Embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.
Já a avó, não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de pirulitos. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso nos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer roquetes, tomar café - café! -, mexer no armário da louça, fazer trem com as cadeiras da sala, destruir revistas, derramar a água do gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com o lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado! Fazer má-criação aos gritos e, em vez de apanhar, ir para os braços da avó, e de lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna...
Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém, esses prazeres não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós, com os seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!
E quando você vai embalar o menino e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz: "Vó!", seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.
E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe o castiga, e ele olha para você, sabendo que se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade...
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menininho - involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, Vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague...
(O brasileiro perplexo, 1964.)
Geometria dos ventos
Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio.
como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada -
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao mesmo tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia.
(Poesia feita em homenagem ao poema Geometrida dos Ventos de Álvaro Pacheco)
Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio.
como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada -
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao mesmo tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia.
(Poesia feita em homenagem ao poema Geometrida dos Ventos de Álvaro Pacheco)
Telha de vidro
Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...
A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...
Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que - coitados - tão velhos
só hoje é que conhecem a luz doa dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.
Que linda camarinha! Era tão feia!
- Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você na experimenta?
A moça foi tão vem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!
Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...
A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...
Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que - coitados - tão velhos
só hoje é que conhecem a luz doa dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.
Que linda camarinha! Era tão feia!
- Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você na experimenta?
A moça foi tão vem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!
A "inspiração" não vem para todos
A noção comum que se tem a respeito
do escritor é que pessoas excepcionais, nascidas com o dom de escrever bem o
belo, são periodicamente visitadas por uma espécie de iluminação das musas, ou
do Espírito Santo, ou de um outro espírito propriamente dito – fenômeno a que
se dá o nome de "inspiração". O escritor fica sendo assim uma espécie
de agente ou médium, que apenas capta as inspirações sobre ele descidas,
manipulando-as no papel graças ‘aquela' dom de nascimento que é a sua marca.
Pode ser que existam esses
privilegiados – mas os que conheço são diferentes. Não há nada de súbito, nem
de claro, nem de fácil. O processo todo é penoso e dolorido – e se pode
comparar a alguma coisa, digamos que se parece muito com um processo fisiológico
–, que se assemelha terrivelmente a uma gestação, cujo parto se arrastasse por
muitos meses e até anos. Começa você sentindo vagamente que tem umas coisas
para dizer ou uma história para contar. Ou, às vezes, ambas. Fica aquilo lá
dentro, meio incômodo, meio inchado (na minha terra se diria como "uma dor
incausada"), quando um belo dia a coisa dá para se mexer. Surgem frases já
inteiras, surgem indefinições que, se você for ladino bastante, anota para
depois aproveitar; mas se for o contumaz preguiçoso confia-as à memória e
depois as esquece. Dentro da enxurrada de frases e de idéias aparecem, então,
as pessoas. Surgem como desencarnados numa sessão espírita – timidamente,
imprecisamente. São uma cabeça, um silhueta, uma voz. Neste ponto, com as
frases, pensamentos e criaturas (e mormente com o cenário, embora ainda não se
haja falado nele), nessa altura, a história já se está arrumando. Você sabe
mais ou menos o que contar. Os autores meticulosos, nessa fase dos
acontecimentos, já delinearem o que eles costumam chamar de "o plano de
obras", ou seja, um esqueleto do enredo. Se é um romance, o esquema será
mais amplo – os claros serão facilmente preenchíveis. A história corre a bem
dizer por si. Mas se se trata de teatro, o esquema bem linear é imperioso: aquilo
tem de ser como um pingue-pongue, ter um crescente constante, uma economia, uma
nitidez...
E então chega um dos piores momentos
nessa fase embrionária da obra por escrever. O autor enguiça. Falta-lhe
imaginação para desenrolar o resto da história, falta a centelha necessária
para criar a situação única, indispensável, climática, que será como a tônica
do trabalho. E a gente fica numa irritabilidade característica, e numa pena
enorme de Deus Nosso Senhor, que é obrigado a dirigir as histórias não apenas
de um punhado de personagens mas os milhões de viventes que andam pelo mundo –
e se concebe um respeito trêmulo pela divina capacidade de intenção, que tão
pouco se repete e tão invariavelmente cria...
Talvez com autores de imaginação rica
o fenômeno se passe diferente. É provável que eles, ao contrário de nós, os
terra-a-terra, primeiro imaginem um enredo e depois, segundo as necessidades
desse enredo, vão criando os personagens e os situando no tempo e no espaço. Aí
a sensação criadora deve ser de plenitude e gratificação. Mas esses são os
estrelos. A arraia miúda escrevente – ai de nós – é mesmo assim como eu disse:
pena, padece e só então escreve.
Noite
Não era um pesadelo, não dava
angústia nem medo, mas sonhei que estava morta. Creio que morta de muito, podia
dizer mumificada, mas não: estava era como que transformada em terra, tendo de
gente apenas a forma e essa mesma se desfazendo aos poucos. Virada numa espécie
de estátua de barro e areia, jogada numa elevação nua do solo, num leito de
seixos miúdos, sem lhes sentir contudo as asperezas, porque afinal a nossa substância,
a dos seixos e a minha, era quase a mesma. Exposta ao sol e à chuva, os cabelos
eram como ervas secas, com as raízes mais secas ainda se afundando no crânio
argiloso, os braços de terra dura atirados em cruz, as pontas dos dedos se
esfarinhando, o nariz, as orelhas, começando a se esbeiçar. Dentro do peito oco
uma pedra jazia de encontro à espinha terrosa – e aquela pedra era o meu
coração.
Claro que, estando morta, eu não
tinha consciência nem sentidos: a pessoa que via aquele monte de terra com forma
de gente, cuja poeira o vento levantava um pouco, essa pessoa não sei quem era.
Nem seria um desdobramento da morte, nem sei com que olhos eu me enxergava. Era
antes uma percepção que, não sendo consciente, também não era sequer
subconsciente, ficava mais baixo disso, era uma percepção elementar, vaga e
morfina, sem sentido de dor nem de nada, apenas aquela como intuição de que
estava presente, de que eu era. A pura sensação da presença, apenas, desacompanhada
de qualquer outra.
E então começou a chover. A princípio
a água peneirava em cima da forma ressequida, ia-se embebendo nela, e os
contornos esbatidos se acusavam, criando até uma ilusão de vida. Mas, à medida
que a chuva engrossava, a água escorria pela face do vulto de terra e ia
carregando consigo um pouco dessa terra e tanto a face, como os dedos, como os
contornos do corpo, aos poucos iam se apagando, se dissolvendo, arrastados pela
chuva. Passado um tempo, já não havia mais silhueta humana no vulto que se
reduzia a um montão de terra, oblongo, como os que se erguem por cima das covas
recentes. Parte da terra formada no que tinha sido eu, arrastada pelos regatos
da chuva, ia ficando depositada no caminho, em alguma depressão; a outra parte,
que a correnteza apanhara com mais força, era carregada até um grande prato
d'água que ficava próximo e não era lago nem mar, antes um alagadiço de águas
mortas, com raízes negras no fundo de lodo, ramos e folhas verdes emergindo em
ilhas redondas, na superfície.
Por fim, do meu vulto deitado naquele
cabeço de terreno não restava mais nada senão alguns montículos
irreconhecíveis. E, com a substância dele, também se fora aquela sensação de
vida elementar, aquele sentido de presença que, de certo modo, testemunhara o
sonho. E o limo e a água e as folhas do alagadiço, já não mais açoitados pela
chuva, tornaram a dormir, num grande silêncio.
RACHEL DE QUEIROZ
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Rachel
de Queiroz (Fortaleza, 17 de
novembro de 1910 — Rio de Janeiro, 4 de novembro de 2003) foi uma tradutora,
romancista, escritora,jornalista, cronista prolífica e importante dramaturga brasileira.
Autora
de destaque na ficção social nordestina. Foi primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Em 1993,
foi a primeira mulher galardoada com o Prêmio Camões,2 equivalente
ao Nobel, na língua portuguesa. Ingressou na Academia Cearense de Letras no dia 15
de agosto de 1994 na ocasião do centenário da instituição
Biografia
Rachel de Queiroz com os amigos Adonias Filho (esquerda),
e Gilberto
Freyre (direita).
Rachel era filha de Daniel de Queiroz Lima e Clotilde
Franklin de Queiroz, descendente pelo lado materno da família de José de
Alencar.4
Em 1917, após uma grande seca, muda-se com seus
pais para o Rio de Janeiro e logo depois para Belém doPará.
Retornou para Fortaleza dois anos depois.2
Em 1925 concluiu o curso
normal no Colégio da Imaculada Conceição. Estreou na imprensa no jornal O
Ceará, escrevendo crônicas e poemas de caráter modernista sob
o pseudônimo de Rita de Queluz. No mesmo ano lançou em forma de folhetim o
primeiro romance, História de um Nome.
Aos vinte anos, ficou
nacionalmente conhecida ao publicar O Quinze (1930), romance que
mostra a luta do povo nordestino contra a seca e a miséria.
Demonstrando preocupação com questões sociais e hábil na análise psicológica de
seus personagens, destaca‐se no desenvolvimento do
romance nordestino.
Começa a se interessar
em política social em 1928-1929 ao
ingressar no que restava do Bloco Operário Camponês em
Fortaleza, formando o primeiro núcleo do Partido Comunista Brasileiro. Em 1933, começa a dissentir
da direção e se aproxima de Lívio Xavier e
de seu grupo em São Paulo, lá indo morar até 1934. Milita então
com Aristides Lobo,2 Plínio Mello, Mário Pedrosa,
Lívio Xavier, se filiando ao sindicato dos professores de ensino livre,
controlado naquele tempo pelos trotskistas.
Depois, viaja para o
norte em 1934, lá permanecendo até 1939. Já escritora consagrada, muda-se para
o Rio de Janeiro. No mesmo ano foi agraciada com o Prêmio Felipe d'Oliveira pelo
livro As Três Marias. Escreveu ainda João Miguel (1932), Caminhos
de Pedras (1937) e O Galo de Ouro (1950).4
Foi presa em 1937, em
Fortaleza, acusada de ser comunista. Exemplares de seus romances foram
queimados. Em 1964, apoiou a ditadura militar que se instalou no
Brasil. Integrou o Conselho Federal de Cultura e o diretório nacional da ARENA, partido político de sustentação do
regime.5
Lançou Dôra, Doralina em
1975, e depois Memorial de Maria Moura (1992),
saga de uma cangaceira nordestina adaptada para a televisão em
1994 numa minissérie apresentada pela Rede Globo.
Exibida entre maio e junho de 1994 no Brasil, foi
apresentada em Angola, Bolívia, Canadá, Guatemala, Indonésia, Nicarágua, Panamá, Peru, Porto Rico, Portugal, República Dominicana, Uruguaie Venezuela,
sendo lançada em DVD em
2004.
Publicou um volume de memórias em
1998. Transforma a sua "Fazenda Não Me Deixes", propriedade
localizada em Quixadá, estado do Ceará,
em reserva particular do patrimônio
natural. Morreu em 4 de novembro de 2003, vítima de problemas
cardíacos, no seu apartamento no Rio de Janeiro, dias antes de completar 93
anos.2
Durante trinta anos
escreveu crônicas para a revista semanal O Cruzeiro e com o fim desta para o
jornal O Estado de S.Paulo.6
Academia Brasileira de Letras
Concorreu contra o
jurista Pontes de Miranda para
a vaga de Cândido Mota Filho da cadeira 5 da Academia Brasileira de Letras. Venceu o
pleito ocorrido em 4 de agosto de 1977 por 23 votos, contra 15 dados ao
opositor e um em branco. Foi empossada em 4 de novembro de 1977.7 Recebida
por Adonias Filho, foi a quinta ocupante da cadeira
5, que tem como patrono Bernardo Guimarães.
Prêmios outorgados (os principais)
Prêmio Fundação Graça Aranha para O quinze,
1930
·
Prêmio
Sociedade Felipe d' Oliveira para As Três Marias, 1939
·
Prêmio
Saci, de O Estado de São Paulo, para Lampião, 1954
·
Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo
conjunto de obra, 1957
·
Prêmio
Teatro, do Instituto Nacional do Livro, e Prêmio Roberto Gomes, da Secretaria
de Educação do Rio de Janeiro, para A beata Maria do Egito, 1959
·
Prêmio Jabuti de
Literatura Infantil, da Câmara Brasileira do Livro (São Paulo),
para O menino mágico, 1969
·
Prêmio
Nacional de Literatura de Brasília para conjunto de obra em 1980
·
Título
de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará, em 1981
·
Medalha
Marechal Mascarenhas de Morais, em solenidade realizada no Clube Militar, em
1983
·
Medalha
Rio Branco, do Itamarati, 1985;
·
Medalha
do Mérito Militar no grau de Grande Comendador, 1986
·
Medalha
da Inconfidência do Governo de Minas Gerais,
1989
·
Prêmio Camões, o maior da Língua Portuguesa,
1993, sendo a primeira mulher a recebê-lo
·
Título
de Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual do Ceará -
UECE, 1993
·
Título
de Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual Vale do Acaraú,
de Sobral, em 1995
·
Prêmio
Moinho Santista de Literatura, 1996, dentre outros inúmeros prêmios e títulos
·
Título
Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2000
·
Medalha
Boticário Ferreira, da Câmara Municipal de Fortaleza, 2001.
·
Troféu
Cidade de Camocim em 20 de Julho de 2001 - Academia
Camocinense de Letras e Prefeitura Municipal de Camocim
Obras
Principais
·
O quinze, romance 1930, tradução francesa
com o título "L'année de la grande sécheresse",Stock,Paris,1986,ISBN
2-234-01933-8
·
João
Miguel, romance (1932)
·
Caminho
de pedras, romance (1937)
·
A
donzela e a moura torta,
crônicas (1948)
·
O galo
de ouro, romance (folhetins na
revista O Cruzeiro, 1950)
·
Lampião - peça de teatro (1953)
·
A
beata Maria do Egito- peça
de teatro (1958)
·
Lampião;
A Beata Maria do Egito (livro-2005)
·
Cem
crônicas escolhidas (1958)
·
O
brasileiro perplexo,
crônicas (1964)
·
O
caçador de tatu,
crônicas (1967)
·
Um
Alpendre, uma rede, um açude - 100 crônicas escolhidas
·
O
homem e o tempo - 74 crônicas escolhidas
·
O
menino mágico,
infanto-juvenil (1969)
·
Dôra, Doralina, romance
(1975)
·
As
menininhas e outras crônicas (1976)
·
O
jogador de sinuca e mais historinhas (1980)
·
Cafute
e Pena-de-Prata,
infanto-juvenil (1986)
·
As
terras ásperas (1993)
·
Teatro, teatro (1995)
·
Nosso
Ceará, relato, (1997) (em
parceria com a irmã Maria Luiza de Queiroz Salek)
·
Tantos
Anos, autobiografia (1998)
(com a irmã Maria Luiza de Queiroz Salek)
·
Não me
deixes: suas histórias e sua cozinha, memórias gastronômicas (2000) (com Maria Luiza de
Queiroz Salek)
Reunidas de ficção
·
Três
romances (1948)
·
Quatro
romances (1960)
No dia 4 de dezembro de
2003, um mês depois de sua morte, foi lançado na Academia Brasileira de Letras
o livro Rachel de Queiroz, um perfil biográfico da escritora, fruto de uma
longa pesquisa realizada pela jornalista Socorro Acioli, publicado pelas
Edições Demócrito Rocha.
Sua biografia foi
narrada no livro No Alpendre com Rachel, de autoria de José Luís
Lira, lançado na Academia Brasileira de Letras em 10 de julho de 2003, poucos meses antes
do falecimento da escritora.
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