sábado, 16 de fevereiro de 2013

AMOR - CLARICE LISPECTOR









Clarice é uma das escritoras que mais gosto e este é um dos contos que eu sempre trabalho em classe. Atualmente seus textos estão dominando o mundo virtual e é comum encontrarmos citações de Clarice em orkut, twitter e etc. Acredito que esse fenômeno deve ser aproveitado em sala de aula. E Clarice, é sempre Clarice com sua linguagem que nos faz pensar em nosso cotidiano e em nossas ações...
Boa leitura!

Boa Leitura!


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.
O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.
Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.
O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.


Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.
Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.
Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.
Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.



Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.
Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.
Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.
Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.
Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.
— O que foi?! Gritou vibrando toda.
Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo: 
— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! Disse ela.
— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.
Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver. Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O HOMEM NU


Ao acordar, disse para a mulher:
– Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
– Explique isso ao homem – ponderou a mulher.
– Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier, a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa-o bater até cansar. Amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
– Maria! Abre aí, Maria. Sou eu – chamou, em voz baixa.
          Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço de escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
– Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lance de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão. Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
– Ah, isso é que não! – fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pelo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!
– Isso é que não – repetiu furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava.
Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador.
Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.
– Maria! Abre esta porta! – gritava desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
– Bom dia, minha senhora – disse ele, confuso. – Imagine que eu...
          A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
          – Valha-me Deus! O padeiro está nu!
          E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:    
– Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava: 
– É um tarado!
            – Olha, que horror!
            – Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
            Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era.    Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
            – Deve ser a polícia – disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
            Não era: era o cobrador da televisão.


·                     Esta é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.

TEXTOS DIVERSOS....

          Olá, pessoal, já há algum tempo que não postava nada, mas, devido ao feriado que nos oferece alguns momentinhos livres; comecei a ler alguns blogs e descobri a imensa quantidade de textos para nossos alunos para serem trabalhados em sala de aula, principalmente em aulas de reforço.
          Eu sempre inicio com a leitura de um texto que à cada semana modifico o gênero e depois discutimos e partimos para a interpretação oral ou escrita (depois posto aqui as perguntas). E todos eles sabem que não abro mão de leitura e não deixo de oferecer a explicação da importância e significância de tal ato.
          Espero que seja proveitosa a todos também..
          Boa leitura!!!!

FÁBULA DE CONVIVÊNCIA


Durante uma era glacial, muito remota, quando parte do globo terrestre esteve coberto por densas camadas de gelo, muitos animais não resistiram ao frio intenso e morreram indefesos, por não se adaptarem às condições do clima hostil. Foi então que uma grande manada de porcos espinhos, numa tentativa de se proteger e sobreviver começou a se unir, a juntar-se mais e mais. 
            Assim, cada um podia sentir o calor do corpo do outro. E todos juntos, bem unidos, agasalhavam-se mutuamente, aqueciam-se, enfrentando por mais tempo aquele inverno tenebroso. Porém, vida ingrata, os espinhos de  cada  um  começaram  a   ferir os companheiros  mais próximos,  justamente  aqueles que  lhes forneciam  mais calor, aquele calor vital, questão  de vida  ou   morte.    E afastaram-se, feridos, magoados, sofridos. Dispersaram-se, por não suportarem mais tempo os espinhos dos seus semelhantes. Doíam muito... 
            Mas, essa não foi a melhor solução: afastados, separados, logo começaram a morrer congelados. Os que não morreram voltaram a se aproximar pouco a pouco, com jeito, com precauções, de tal forma que, unidos,  cada qual conservava certa distância do outro, mínima, mas o suficiente para conviver sem ferir, para sobreviver sem magoar, sem causar danos recíprocos. 
            Assim suportaram-se, resistindo à longa era glacial. Sobreviveram.                         
                                                                                                                                (Fábulas de Esopo)

A FORMIGA E A POMBA


          Uma formiga sedenta veio à margem do rio para beber água.  Para alcançá-la, devia descer por uma folha de grama. Quando assim fazia,   escorregou e caiu dentro da correnteza. Uma pomba, pousada numa árvore próxima, viu a formiga em perigo. Rapidamente, arrancou uma folha da árvore e deixou-a cair no rio, perto da formiga,   que pôde subir nela e flutuar até a margem. Logo que alcançou a terra, a formiga viu um caçador de  pássaros, que se  escondia atrás duma árvore,  com uma rede  nas mãos. Vendo que a pomba corria perigo, correu até o caçador e mordeu-lhe o calcanhar. A dor fez o caçador largar a rede e a pomba fugiu para um ramo mais alto. De lá, ela 
arrulhou (exprimir sentimentos com ternura) para a formiga:
         - Obrigada, querida amiga. Uma boa ação se paga com outra. 
                                                                                                                                     (Fábulas de Esopo)

A MORTE DA TARTARUGA



          O menininho foi ao quintal e voltou chorando: a tartaruga tinha morrido. A mãefoi ao quintal com ele, mexeu na tartaruga com um pau (tinha nojo daquele bicho) e constatou que a tartaruga tinha morrido mesmo. Diante da confirmação da mãe, o garoto pôs-se a chorar ainda com mais força. A mãe a princípio ficou penalizada, mas logo começou a ficar aborrecida com o choro do menino. “Cuidado, senão você acorda seu pai”. Mas o menino não se conformava. Pegou a tartaruga no colo e pôs-se a acariciar-lhe o casco duro.
           A mãe disse que comprava outra, mas ele respondeu que não queria, queria aquela, viva! A mãe lhe prometeu um carrinho, um velocípede, lhe prometeu uma surra, mas o pobre menino parecia estar mesmo profundamente abalado com a morte do seu animalzinho de estimação. Afinal, com tanto choro, o pai acordou lá dentro, e veio, estremunhado, ver de que se tratava.
 O menino mostrou-lhe a tartaruga morta. A mãe disse: — “Está aí assim há meia hora, chorando que nem maluco. Não sei mais o que fazer. Já lhe prometi tudo mas ele continua berrando desse jeito”. O pai examinou a situação e propôs: — “Olha, Henriquinho. Se a tartaruga está morta não adianta mesmo você chorar. Deixa ela aí e vem cá com o pai.”.
O garoto depôs cuidadosamente a tartaruga junto do tanque e seguiu o pai, pela mão. O pai sentou-se na poltrona, botou o garoto no colo e disse: — “Eu sei que você sente muito a morte da tartaruguinha. Eu também gostava muito dela. Mas nós vamos fazer pra ela um grande funeral”. (Empregou de propósito uma palavra difícil). O menininho parou imediatamente de chorar. “Que é funeral?” O pai lhe explicou que era um enterro. “Olha, nós vamos à rua, compramos uma caixa bem bonita, bastante balas, bombons, doces e voltamos para casa. Depois botamos a tartaruga na caixa em cima da mesa da cozinha e rodeamos de velinhas de aniversário.
Aí convidamos os meninos da vizinhança, acendemos as velinhas, cantamos o “Happy-Birth-DayTo-You” pra tartaruguinha morta e você assopra as velas. Depois pegamos a caixa, abrimos um buraco no fundo do quintal, enterramos a tartaruguinha e botamos uma pedra em cima com o nome dela e o dia em que ela morreu. Isso é que é funeral! Vamos fazer isso?” O garotinho estava com outra cara. “Vamos, papai, vamos! A tartaruguinha vai ficar contente lá no céu, não vai? Olha, eu vou apanhar ela”. Saiu correndo.
 Enquanto o pai se vestia, ouviu um grito no quintal. “Papai, papai, vem cá, ela está viva!”
           O pai correu pro quintal e constatou que era verdade. A tartaruguinha estava andando de novo, normalmente. “Que bom, hein?” — disse — “Ela está viva! Não vamos ter que fazer o funeral!” “Vamos sim, papai” — disse o menino ansioso, pegando uma pedra bem grande — “Eu mato ela”.
MORAL: O importante não é a morte, é o que ela nos tira.
                                   Fernandes, Millôr. Fábulas fabulosas. São Paulo: Círculo do Livro, 1973       

UM SAPATO EM CADA PÉ



  Esta é a história de dois pezinhos.
  Um pé esquerdo e um direito. Quem olhava assim rápido nem via muita diferença entre eles. Podia achar que um fosse o reflexo do outro como num espelho, mas eram muito diferentes.
  O esquerdo tinha o dedão mais gordinho e gostava de futebol. O direito morria de cócegas e adorava balé.
  O esquerdo preferia usar tênis.  Já o direito, por ele vivia descalço.
  O esquerdo, muito vaidoso, ficava feliz de unhas cortadas. O direito, mais desleixado, às vezes cheirava chulé.
  Como os pezinhos dependiam de sua dona, viviam fazendo acordos:
  - Tá bom, eu vou para trás na hora do arabesque, lá na aula de balé – dizia o esquerdo. – Mas, no futebol, eu chuto a bola.
  - Legal. – concordava o direito. – Mas, quando a gente estiver dançando, não fique reclamando que a sapatilha aperta.
  Conversavam sempre à noite, quando Mariana, a dona deles, dormia. Assim, podiam se entender melhor.
  Uma noite, Mariana perdeu o sono. Enquanto contava carneirinhos, ouviu uma vozinha dizendo assim:
  - Tomara que amanhã ela ponha meia rosa.
  A menina levou um susto. Levantou a cabeça do travesseiro, a tempo de ouvir o pé direito responder:
  - Ah, não. Gosto mais daquelas de listrinhas azuis.
  Mariana não podia acreditar no que via e ouvia. Os pezinhos continuaram:
  - Esqueceu que amanhã tem aula de futebol? – lembrou o esquerdo. – Ela sempre põe meias cor-de-rosa quando vai jogar.
  - Droga, então vai vestir as chuteiras também. Depois você reclama se eu fico cheirando a chulé.
  - Vou marcar um golaço, duvida? – gabou o esquerdo.
  -  Não, sei que graça você vê em futebol! – suspirou o direito.
  Mariana fez uma cara de quem tinha descoberto a América:
  - Então é por isso que eu chuto melhor com a esquerda!
  Os pezinhos prosseguiram no papo:
  - Não ligue. À tarde, ela vai na aula de dança e ai você fica feliz.
  - Vou fazer a melhor pirueta da minha vida, me espere!
  A menina se surpreendeu mais uma vez:
  - Por isso eu arraso quando fico na ponta do pé direito!
  Comovida, Mariana pensou no esforço que seus pezinhos faziam para se entenderem, apesar das diferenças. Pensou também como seria se todas as pessoas fizessem o mesmo.
  Afundou no travesseiro e dormiu.
  Na manhã seguinte, ela resolveu fazer uma surpresa para os seus pés. No esquerdo, vestiu a meia rosa e a chuteira. No direito, a meia listradinha de azul e a sapatilha. Foi para escola assim, com um pé de cada jeito.
  Quando pisou na sala de aula, seus colegas começaram a caçoar dela. Mariana tentou explicar que seus pés eram diferentes um do outro e que isso não tinha o menor problema. Mas a turma não parava de rir.
  Mariana descobriu como era difícil ser diferente. Só porque não usava sapatos iguais como todo mundo, tinha virado motivo de riso. Morrendo de raiva, ela foi chorar na biblioteca.
  Escondida atrás de uma estante, abaixou-se para ficar mais perto de seus pés. Acariciando ora o esquerdo, ora o direito, e disse:
  - Não liguem para esses bobos. Eu não vou deixar de gostar de vocês só porque são diferentes um do outro.
  Estava nisso quando alguém se aproximou. Mariana olhou pela fresta de uma prateleira e tudo que viu foi dois pés. Um estava calçado com tênis. O outro, com chinelo de praia.
  A menina levantou os olhos, maravilhada. Deu de cara com o Edgar, o novo colega de escola. Ele estendeu-lhe a mão dizendo:
  - Não chore, Mariana. Nenhum PÉ É IGUAL AO OUTRO.
  Foram os dois para o pátio. Ela já nem ligava mais para a zoada dos colegas. Mariana só ficava pensando num jeito de apresentar seus pés aos pés de Edgar.

Cláudio Fragata. In: Recreio Especial: Era uma vez..., n. 1. São Paulo, Abril, s/d.

UMA MENINA CHAMADA CHAPEUZINHO AZUL


Aposto que você adivinhou que essa menina conhecida pelo apelido de Chapeuzinho Azul era irmã daquela outra menina conhecida pelo apelido de Chapeuzinho Vermelho.
As duas meninas ganharam seus chapeuzinhos no mesmo dia. Foi no Dia da Criança de mil, seiscentos e me esqueci. Elas gostaram tanto de ganhar seus chapeuzinhos que até se esqueceram de ficar bravas porque não tinham ganhado as bonecas que tanto queriam.
Esses chapeuzinhos na verdade eram duas capinhas com capuz, mas todo mundo conhece a história
da menina que ganhou a roupinha vermelha como “Chapeuzinho Vermelho”, então vamos fingir que as capinhas com capuz eram chapeuzinhos, está bem?
Naquele dia em que a menina do chapeuzinho vermelho saiu de casa para levar doces para a vovozinha que estava doente e se encontrou com o lobo etc. e tal, a irmã dela ficou em casa. Ela passou o dia todo no quarto porque estava com gripe.
Ninguém nunca ouviu falar na Chapeuzinho Azul porque ela nunca teve um dia tão agitado como o da irmã dela. Ninguém nunca ouviu falar também do pai das duas meninas porque quando a Chapeuzinho Vermelho foi pela estrada afora bem sozinha, o pai dela estava na cidade, que ficava não muito ali por perto. Ele saía de casa todo dia bem cedinho e só voltava de noite. Porque trabalhava, junto com muitos outros homens, na construção de uma ponte que estava sendo feita sobre um grande rio.
Ninguém nunca ficou sabendo também que a Chapeuzinho Vermelho tinha uma outra avó. Isso é fácil de imaginar, porque afinal as crianças geralmente têm duas avós, a mãe da mãe e a mãe do pai. Essa outra avó era mãe do pai. Aquela que quase virou comida de lobo era a mãe da mãe.
Essa outra avó das Chapeuzinhos se chamava Iolanda, mas todo mundo a chamava de Vó Gorda, você pode imaginar por quê, né?!! Mas, ela não se importava com esse apelido, e até achava graça. Então, a Vó Gorda saiu lá da casinha dela com uma cestinha de doces para levar para a Chapeuzinho Azul que, como eu já contei, estava gripada, coitadinha.
No caminho para a casa da netinha, a avó se encontrou com um lobo. Um lobo tão Lobo Mau quanto aquele que enganou a Chapeuzinho Vermelho. E esse outro Lobo Mau tentou enganar a Vó Gorda, dizendo para ela ir pelo caminho da floresta. Mas como ela não era boba, foi pelo caminho mais curto e chegou antes do Lobo Mau. E quando ele chegou pronto para comer a Chapeuzinho Azul e a avó dela, deu de cara com o pai das meninas, que já tinha voltado do trabalho. Ele estava esperando pelo lobo na frente da casa com sua espingarda em punho. Lá dentro a Chapeuzinho Azul, a mãe dela e a Vó Gorda espiavam pela janela e riam.
O lobo, que era tão Lobo Mau quanto o outro, mas também tão esperto quanto a Vó Gorda, quando viu a espingarda, deu um tchauzinho de longe e deu no pé. Na noite desse mesmo dia, a Chapeuzinho Vermelho chegou acompanhada pelo caçador e contou sua aventura. Foi por isso que os pais das meninas nunca mais deixaram as duas andarem sozinhas pela floresta. Depois do jantar, as duas irmãs pediram para comer os doces que a Vó Gorda tinha trazido em sua cestinha. Mas ela deu uma gargalhada e confessou que tinha ficado com fome no caminho e foi beliscando, beliscando, beliscando e, quando chegou, a cesta já estava vazia.


(De Flávio de Souza, livro: Que história é essa? 2. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 2000)

O TATARAVÔ DO FUTEBOL


Foram os chineses que inventaram o futebol há cerca de 4.500 anos. Se bem que o que eles jogavam naquele tempo era uma espécie de tataravô do futebol moderno. Nem era considerado um esporte, mas apenas um treinamento para soldados. Os chineses antigos deram ao seu jogo o nome de Kerami. Cada time tinha oito jogadores e as balizas eram feitas com varas de bambu fincadas no chão. O negócio era chutar a bola para além das estacas e marcar pontos. Ninguém queria saber de defender só atacar.
            O futebol continuou por muito tempo como treinamento para soldados. Foi assim na Grécia Antiga e também em Roma. Os jogadores gregos chutavam a bola feita com uma bexiga de boi cheia de areia. Coitados, seus pés deviam ficar doendo muito depois das partidas. Como eram soldados, não deviam ligar muito para isso.
            Foi apenas no século XVII que os ingleses conseguiram tirar o futebol dos militares, transformando-o em esporte. O campo media então 120 metros de largura por 180 de comprimento. Em cada uma de suas extremidades existiam dois postes de madeira chamados goal (a palavra gol vem do inglês goal). A bola já era de couro cheia de ar. Mas era um jogo praticado apenas pelos ricos, os nobres.
            Com o tempo, passou a ser praticado pelos alunos dos colégios internos. E era a maior confusão; cada colégio tinha as suas próprias regras e por isso não dava  para marcar partidas entre eles. O jeito era organizar a coisa. Na cidade de Cambridge, os alunos de várias escolas fizeram uma reunião para estabelecer um código único de regras que servisse para todos. Nascia assim o futebol moderno.

Folha de São Paulo – Folhinha

EU


          Eu não era nem novo nem velho. Tinha a capa colorida, um pouco amassada e uma das páginas rasgada na parte de baixo, naquele lugar que chamam de pé-de-página.
Vivia jogado no canto de um quarto junto de velhos brinquedos. Todos os dias o menino entrava no quarto para brincar. O que eu mais queria era que ele me desse atenção, me segurasse, passasse minhas páginas, lesse o que tenho para contar.
Mas que nada! Brincava naquele quarto e nem me olhava. Ficava horas e horas com os toquinhos de madeira, carrinhos, quebra-cabeças e outros brinquedos.
Eu me sentia um grande inútil. Um dia não agüentei mais: chorei tanto, mas tanto, que minhas lágrimas molharam todas as minhas páginas e o chão. Parecia que eu tinha feito xixi no quarto. Levei um tempão prá secar.
No dia seguinte, quando os raios de  sol entraram pela janela, me senti  melhor, e minhas páginas secaram todas.
Um dia o menino entrou no quarto  com um  lápis e uma folha de papel.  Assentou-se bem pertinho de mim e   encheu os dois lados da  folha com  desenhos e rabiscos.
Em seguida, me segurou, me folheou,   viu algumas de minhas ilustrações e me abriu  no meio com aquela  cara de quem queria rabiscar.
Eu acabava de ser descoberto! Preso entre as  suas mãos o meu coração disparou de alegria: tum, tum, tum, tum... Era muita emoção para um livro só!
                                                                    Autor desconhecido

O MACACO E O COELHO


Um macaco e um coelho fizeram à combinação de um matar as borboletas e outro matar as cobras. Logo depois o coelho dormiu. O macaco veio e puxou-lhe as orelhas.
      - O que é isso? Gritou o coelho, acordando dum pulo.
      O macaco deu uma risada.
      ­­- Ah! Ah! Pensei que fossem duas borboletas...
      O coelho ‘danou’ com a brincadeira e disse lá consigo mesmo: “Espere que você vai me pagar”.
      Logo depois o macaco sentou-se numa pedra para comer uma banana. O coelho veio por trás com um pau, e lept - pregou-lhe uma paulada no rabo. O macaco deu um berro, pulando para cima duma árvore. A gemer e chorar.
       - Desculpe, amigo - disse lá debaixo o coelho. - Vi aquele rabo torcidinho em cima da pedra e pensei que fosse cobra. O coelho saiu dando risada mas também passou a sentir medo da vingança do macaco
      Foi desde aí que o coelho, de medo do macaco vingar-se, passou a morar em buracos.

Fábula-  de Monteiro Lobato