terça-feira, 23 de julho de 2013

DELÍCIAS DE MANAUS




As mães ensinam que é feio escutar conversa dos outros, mas, com os coletivos entupidos de gente, somos forçados a isso, e acabamos nos interessando pelo que não é de nossa conta. Talvez fosse mais acertado aconselhar, hoje em dia: Tome parte da conversa alheia. Ajuda a passar o tempo, e contribui para confraternizar solitários e complexados. Mas conversas há que se desenvolvem num círculo fechado, por mais públicas que se afigurem, e não adianta você demonstrar ânimo participante. Quem disse o cronista era capaz de insinuar-se naquele papo amazônico, a  centímetros apenas de seus ouvidos, pois estava justamente com a  cabeça ao nível do diafragma da gorda, enquanto a magra se comprimia a seu lado, nessa demonstração de todos os dias, de que dois corpos podem ocupar o mesmo lugar no espaço, desde que seja num micro-ônibus?
Eram duas moças entre caboclo e índio, e prosseguiam na conversa que devia ter começado na fila, e que o incômodo da situação não afetava. Em realidade não estavam ali. Estavam comendo em Manaus, pela saudade.
– Meu primo chegou ontem de avião, não trouxe muita coisa. Mas vieram uns tucumãs, ô delícia!
– De tucumã eu aprecio mais é o vinho. Você tem em casa?
– Não, mamãe não tem podido fazer. E você?
- Pois olhe, menina, tenho ainda duas garrafas, lhe cedo uma.
– Aceito, sim, e vou escrever pra lá pedindo caxiri. Quando vier, reparto com você.
– Gosto menos de caxiri, sabe? De pupunha, menina, o que me interessa mesmo é o coco no melaço. Uma bondade!
Era a gorda quem exclamava. A magrinha passava a língua nos lábios. E, por sua vez:
– Fruta daqui não dá gosto...Quem está acostumado a coco, hem? De tantas variedades....
– É mesmo. E que mais trouxe seu primo?
– Bem, trouxe jacundá fresquinho, criatura! Imagine que ele na véspera foi guapuiar no igarapé, e zuque: jacundá apareceu. Foi só embarcar no avião cedinho, o comandante é camarada, e quando meu primo desceu, a gente até que estava  sem fome, mas o peixe não esperava, então corremos pra casa e de madrugada preparamos e comemos ele.
– Com tucupi é?
– Evidente! De um aipim especial, que isso meu primo não esqueceu nunca de trazer, e pimenta lá de casa.
– Ai, ingrata, e você não telefonou pra gente.
– Àquela hora? Deixa estar, que na próxima semana eu chamo. E não vai demorar, meu tio vem aí.
– Pede a ele pra me trazer uma língua de pirarucu, filhinha. Preciso muito de um ralador, e esse negócio de lata não vai.
– É, amortece o paladar. Mudando de assunto, estou pensando agora numa tartaruguinha de forno, que comi lá nas férias do ano passado; com sal, pimenta, limão e farinha d’água, dessa passada em gurupema bem fina...
– Ai, não me fale. Esta noite sonhei que estava comendo tambaqui de cacete, depois vinham uns ovinhos de tracajá; depois....
– Ai! E você já sonhou com panelada de maniçoba, aqui no Rio?
– Não, bem. Mas qualquer dia eu sonho.
Houve uma pausa, lembrei-me do estudo de Dante Costa. Eram dois casos – raríssimos entre nós – de sensualidade alimentar, fixada pelo nativismo. E a magra:
– Você onde está almoçando agora?
– Numa pensão da Avenida Antônio Carlos. 50 cruzeiros, mas a dona é baiana, e embora não seja a mesma coisa de Manaus, você sabe, sempre é melhor que essa danação de comidinha carioca!          (Andrade, Carlos Drummond de. Fala amendoeira. Rio de Janeiro: Record, 1990.)

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