terça-feira, 23 de julho de 2013

Um sapato em cada pé



  Esta é a história de dois pezinhos.
  Um pé esquerdo e um direito. Quem olhava assim rápido nem via muita diferença entre eles. Podia achar que um fosse o reflexo do outro como num espelho, mas eram muito diferentes.
  O esquerdo tinha o dedão mais gordinho e gostava de futebol. O direito morria de cócegas e adorava balé.
  O esquerdo preferia usar tênis.  Já o direito, por ele vivia descalço.
  O esquerdo, muito vaidoso, ficava feliz de unhas cortadas. O direito, mais desleixado, às vezes cheirava chulé.
  Como os pezinhos dependiam de sua dona, viviam fazendo acordos:
  - Tá bom, eu vou para trás na hora do arabesque, lá na aula de balé – dizia o esquerdo. – Mas, no futebol, eu chuto a bola.
  - Legal. – concordava o direito. – Mas, quando a gente estiver dançando, não fique reclamando que a sapatilha aperta.
  Conversavam sempre à noite, quando Mariana, a dona deles, dormia. Assim, podiam se entender melhor.
  Uma noite, Mariana perdeu o sono. Enquanto contava carneirinhos, ouviu uma vozinha dizendo assim:
  - Tomara que amanhã ela ponha meia rosa.
  A menina levou um susto. Levantou a cabeça do travesseiro, a tempo de ouvir o pé direito responder:
  - Ah, não. Gosto mais daquelas de listrinhas azuis.
  Mariana não podia acreditar no que via e ouvia. Os pezinhos continuaram:
  - Esqueceu que amanhã tem aula de futebol? – lembrou o esquerdo. – Ela sempre põe meias cor-de-rosa quando vai jogar.
  - Droga, então vai vestir as chuteiras também. Depois você reclama se eu fico cheirando a chulé.
  - Vou marcar um golaço, duvida? – gabou o esquerdo.
  -  Não, sei que graça você vê em futebol! – suspirou o direito.
  Mariana fez uma cara de quem tinha descoberto a América:
  - Então é por isso que eu chuto melhor com a esquerda!
  Os pezinhos prosseguiram no papo:
  - Não ligue. À tarde, ela vai na aula de dança e ai você fica feliz.
  - Vou fazer a melhor pirueta da minha vida, me espere!
  A menina se surpreendeu mais uma vez:
  - Por isso eu arraso quando fico na ponta do pé direito!
  Comovida, Mariana pensou no esforço que seus pezinhos faziam para se entenderem, apesar das diferenças. Pensou também como seria se todas as pessoas fizessem o mesmo.
  Afundou no travesseiro e dormiu.
  Na manhã seguinte, ela resolveu fazer uma surpresa para os seus pés. No esquerdo, vestiu a meia rosa e a chuteira. No direito, a meia listradinha de azul e a sapatilha. Foi para escola assim, com um pé de cada jeito.
  Quando pisou na sala de aula, seus colegas começaram a caçoar dela. Mariana tentou explicar que seus pés eram diferentes um do outro e que isso não tinha o menor problema. Mas a turma não parava de rir.
  Mariana descobriu como era difícil ser diferente. Só porque não usava sapatos iguais como todo mundo, tinha virado motivo de riso. Morrendo de raiva, ela foi chorar na biblioteca.
  Escondida atrás de uma estante, abaixou-se para ficar mais perto de seus pés. Acariciando ora o esquerdo, ora o direito, e disse:
  - Não liguem para esses bobos. Eu não vou deixar de gostar de vocês só porque são diferentes um do outro.
  Estava nisso quando alguém se aproximou. Mariana olhou pela fresta de uma prateleira e tudo que viu foi dois pés. Um estava calçado com tênis. O outro, com chinelo de praia.
  A menina levantou os olhos, maravilhada. Deu de cara com o Edgar, o novo colega de escola. Ele estendeu-lhe a mão dizendo:
  - Não chore, Mariana. Nenhum PÉ É IGUAL AO OUTRO.
  Foram os dois para o pátio. Ela já nem ligava mais para a zoada dos colegas. Mariana só ficava pensando num jeito de apresentar seus pés aos pés de Edgar.

Cláudio Fragata. In: Recreio Especial: Era uma vez..., n. 1. São Paulo, Abril, s/d.

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